Ao entoar os primeiros acordes na guitarra de “Oh, Pretty Woman”, o músico Wagner Bernardo de Figueiredo, 64, de São Paulo, assustou-se. Ele havia esquecido a canção que está no repertório dos seus shows há 20 anos.
“Foi ridículo. Somos em três [músicos], e eles não acreditaram, achavam que estava estava tirando sarro, brincando. Não saiu, não aconteceu. Achei que estivesse com princípio de mal de Alzheimer”, lembra ele.
Recuperado da cirurgia, retomou a rotina, mas nos meses seguintes passou a ter falhas de memória. “Levantava para ir ao banheiro ou pegar alguma coisa dentro de casa e me perguntava: o que é que vim fazer aqui mesmo?”
Além dos esquecimentos, Figueiredo diz que começou a se sentir “nervosinho” demais, apresentar queda de cabelo e desequilíbrio corporal. “Começava a andar em linha reta e ia para a diagonal. Tudo muito esquisito.”
Ao pesquisar sobre o assunto na internet, ele e a mulher descobriram um estudo em andamento no InCor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas da USP que investiga disfunções cognitivas causadas pela Covid-19, mesmo em pessoas assintomáticas ou que tiveram sintomas leves da doença.
À época, vários relatos como o do músico começaram a chegar para a neuropsicóloga Lívia Stocco Sanches Valentin, professora da USP e autora do estudo.
Alguns deles: “Lembro-me de fazer o pedido da comida e de pagar por ele. Mas não me lembro de ter comido”. “Dormi em pé tomando banho.” “Meu marido sofreu traumatismo craniano enquanto andava de bicicleta e dormiu.” “Tive que vender minha moto, desaprendi a andar, não consigo mais ter coordenação e nem equilíbrio para ficar em cima dela!”.
Hoje, mais 400 pacientes “recuperados” da Covid-19 estão sendo acompanhados na pesquisa que investiga o uso de um jogo digital chamado MentalPlus na avaliação e reabilitação da função cognitiva, uma espécie de “musculação mental”.
Segundo Valentin, resultados preliminares indicam que 80% dos seus pesquisados relatam dificuldade de concentração ou atenção, perda de memória ou dificuldade para lembrar-se das coisas, além de mudanças comportamentais e emocionais e queda da coordenação motora.
A hipótese, explica a pesquisadora, é que a infecção viral possa afetar a função executiva do cérebro. De acordo com ela, o quadro é passível de reversão por meio de exercícios cognitivos específicos.
Figueiredo diz que, com os exercícios propostos pelo jogo, conseguiu melhorar “uns 70%” a sua função cognitiva. Mas, como precaução, passou a deixar a sequência melódica das músicas de lado para não passar pelo apuro anterior.
Quase um ano depois do início da pandemia no Brasil, muitas pessoas, assim como o músico, têm travado lutas diárias contra as sequelas tardias da Covid-19.
A dona de casa Liliane da Luz, 36, por exemplo, teve confirmação da Covid-19 em junho de 2020. À época, teve perda de paladar e de olfato, limitações que a acompanham até hoje.
“Não sinto nem gosto nem cheiro. Arroz e carne já queimaram. Tive dificuldade no começo, precisei colocar despertador para ficar atenta ao tempo da comida.”
Resultados preliminares de uma outra pesquisa com pacientes recuperados da doença, acompanhados pela FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto) da USP, revelam que 64% têm algum sintoma persistente seis meses depois do início da infecção.
O médico Marco Tulio Ribeiro, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e professor na Universidade Federal do Ceará, afirma que na atenção primária têm aparecido muitos pacientes com queixas respiratórias, motoras ou emocionais após a infecção pelo coronavírus.
Abalos na saúde mental também são frequentes, inclusive entre as pessoas que não precisaram de internação, segundo ele. “Medo de se infectar novamente, medo de ir para o hospital e ter que ficar internado. Há muitos casos de ansiedade, de depressão e de estresse pós-traumático, inclusive de familiares dos doentes”, relata.
É o caso do motorista Pedro Souza Scapellini, 38. Em julho passado, ele teve diagnóstico de Covid, com sintomas leves como perda de paladar, olfato, dores atrás dos olhos e prostração forte.
Ele conta que, após se curar da Covid, foi tomado pela apatia, um desânimo que nunca havia sentido. “Não tinha vontade de fazer nada. Se me deixassem, ele ficava na cama o dia todo.”
Em setembro, ele procurou um psiquiatra, que diagnosticou depressão.
Fonte: Folha Press